quarta-feira, 2 de outubro de 2013

ACP - ASSOCIAÇÃO A CRIANÇAS COM CÂNCER - PROCEDÊNCIA

No dia 26 de setembro de 2013, foi publicada pelo Juízo da Infância e do Adolescente da Comarca de Criciúma, sentença em Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público do Estado de Santa Catarina, através da 8ª Promotoria de Justiça da Comarca de Criciúma, confirmando-se a liminar deferida e condenando a Associação a Crianças com Câncer a se abster de exercer suas atividades no âmbito da comarca de Cricúma sem o registro a que se refere o art. 91 do Estatuto da Criança e do Adolescente, sob pena de multa diária no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), sem prejuízo da responsabilidade pessoal dos dirigentes pelo descumprimento da determinação judicial

A ACP foi furto de investigação desenvolvida no Inquérito Civil nº06.2011.00003359-2, em que restou apurado que a citada associação atuava no município de Criciúma sem o devido registro no Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente, requisito este obrigatório para funcionamento.

Segue a íntegra da decisão que está sujeita à recurso. (ACP 020.12.017740-4)

S E N T E N Ç A

Relatório:

Trata-se de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público, com pedido de liminar de obrigação de não fazer, em face de ACC – Associação a Crianças com Câncer, por meio da qual requer o impedimento das atividades desenvolvidas pela ré por causa da ausência do seu registro perante o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente – CMDCA de Criciúma.

A liminar foi concedida, determinando-se a interrupção de todos os serviços prestados pela ré e previstos em seu estatuto social, conforme decisão de fls. 825-829, aclarada pela de fl. 886 em sede de embargos.

Citada, a ré apresentou contestação, ocasião em que, além de discutir o mérito, requereu a revogação da tutela de urgência deferida (fls. 870-877).

Com vista dos autos, o Ministério Público ofereceu sua réplica e pleiteou o julgamento antecipado da lide (fls. 895-899).

Fundamentação:

Conheço diretamente do pedido, julgando antecipadamente o feito, porquanto desnecessária a produção de provas em audiência, nos termos do art. 330, I, do Código de Processo Civil.

No que se refere ao pedido da ré, para que seja revogada a tutela de urgência concedida, constata-se nos autos que a pretensão foi alvo de recurso pertinente, estando o assunto sob a análise do Tribunal de Justiça de Santa Catarina.

Além disso, o pedido encontra equivalência com o que for aqui decidido, porque com o mérito se confunde.

Enfrentando o mérito, agora, importante delimitar que o autor ajuizou a presente ação civil pública requerendo o fim das atividades da ré em virtude da ausência do seu registro perante o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente – CMDCA de Criciúma.

Assim, estão fora de discussão os eventuais motivos que levaram o CMDCA a indeferir o registro da ré para que pudesse desempenhar suas atividades. Igualmente, não se abordarão os supostos prejuízos práticos que venham a atingir a população atendida pela ré ou seus colaboradores.

Em suma, será avaliado apenas se a ré possuía ou não registro para funcionar em prol da população infantojuvenil, sem ponderar a respeito da decisão administrativa denegatória do registro ou fazer juízo de valor sobre a atuação da ré, o alcance dos seus fins sociais e os prejuízos decorrentes da cessação dos seus trabalhos.

Dessarte, tem-se que o art. 91 do Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece o seguinte:

Art. 91. As entidades não-governamentais somente poderão funcionar depois de registradas no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, o qual comunicará o registro ao Conselho Tutelar, e à autoridade judiciária da respectiva localidade.

Isso porque, segundo Patrícia Silveira Tavares, ao CMDCA compete o controle das políticas de atendimento direcionadas ao público infantojuvenil na esfera municipal: A designação da tarefa de registro e inscrição dos programas das entidades de atendimento aos Conselhos Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente encontra seu fundamento na missão institucional que lhes é conferida, de exercer o controle da política de atendimento na esfera municipal.

Considerando que as entidades de atendimento são o espaço, por excelência de execução de parcela considerável das ações relacionadas à política de atendimento infanto-juvenil, e, considerando, ainda, a diretriz constitucional de municipalização, nada mais razoável do que dotar aqueles órgãos desse instrumento de controle. (MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade (Coord.). Curso de direito da criança e do adolescente: aspectos teóricos e práticos. 3 ed., rev. e at. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 328)

Wilson Donizete Liberati, por sua vez, ressalta a imprescindibilidade do registro para o funcionamento das entidades não-governamentais:

(...) uma entidade que se proponha a trabalhar com crianças e adolescentes deverá escolher a especialidade da situação de risco apresentada (vítimas de maus-tratos, deficientes físicos, abandonados, infratores etc.) e optar pelo regime de execução apresentado pela lei, que é exemplificativo. Após a escolha da clientela e da opção pelo regime de atendimento a entidade deverá proceder à sua inscrição, junto ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, que manterá o registro das inscrições e de suas alterações, do que fará comunicação ao Conselho Tutelar e à autoridade judiciária (art. 90, parágrafo único). Sem a referida inscrição, a entidade não poderá funcionar (art. 91). (Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. 10 ed, rev e ampl. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 76)

Acerca do tema, o Tribunal de Justiça de São Paulo já decidiu que a observância dos requisitos legais deve sobrepor, inclusive, eventual aspecto humanitário da entidade:
Representação ofertada pelo Ministério Público contra Casa de Recuperação por irregularidades administrativas e funcionais – Sentença que acolheu a representação e que interditou a entidade - Recurso desta destacando que as irregularidades apuradas foram sanadas e que o seu registro no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente está sendo providenciado – Tese de que o aspecto humanitário da benemerência que deve ser preservado diante das dificuldades estatais em suprir o atendimento com crianças e adolescentes que não pode ser acolhida – Prova que revelou que a entidade não atende às exigências legais para funcionar como obra de acolhimento e amparo, não está registrada, não observa as normas sanitárias e não presta assistência profissional, pois seu trabalho é de pregar a leitura da bíblia – Recurso não provido. (Apelação cível n. 098.294.0/2-00, de Penápolis. Câmara Especial. Rel. Des. Moura Ribeiro. Julgado em 24/2/2003)

Colhe-se do aresto:

É incrível se constatar que uma entidade que se diz assistencial, voltada para a recuperação de adolescentes drogados e infratores, possa funcionar sem que nem sequer tenha postulado o seu registro junto ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente. A falta do registro foi confessada pelo dirigente da entidade, pastor evangélico, que justificou que tal providência estava afeita à sua contadora. Conversa fiada pura porque quem quer se dedicar à tarefa nobre não pode esquecer dos requisitos legais a ela inerentes, para que sobrevenha regular fiscalização.

Cumpre ressaltar que, segundo o art. 2º do estatuto social juntado a fls. 837-846, a entidade ré tem por finalidade "(...) lutar pelos interesses e o alívio das necessidades básicas, vividas diariamente pelas crianças portadoras de Câncer, de baixa renda, e seus familiares, além de ex-portadores de Câncer, mas que ainda apresentam sequelas, como prejuízos psicológicos e complicações".

O art. 5º do regramento acrescenta que a ré "(...) ajudará, em caráter subsidiário, além de crianças, os idosos e adultos portadores de doenças tais como: Câncer, Tuberculose e HIV (afetados pelo vírus da Aids), desde que comprovadamente carentes".

Diante desses escopos, fica a entidade não-governamental sujeita ao prévio registro no CMDCA para poder funcionar, uma vez que seu regime se caracteriza como de orientação e apoio sociofamiliar, conforme art. 90, I, do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Com base no entendimento de Patrícia Silveira Tavares, percebe-se quanto as finalidades da ré previstas em seu estatuto social estão inseridas no regime de orientação e apoio sociofamiliar:

Por orientação sociofamiliar compreende-se a intervenção técnica – de assistentes sociais, psicólogos, médicos, entre outros – na família, a fim de identificar as suas fragilidades e, em seguida, apontar aos seus membros os caminhos para a superação; a metodologia deverá ser escolhida pela entidade executora, que poderá, por exemplo, proporcionar palestras educativas, coordenar grupos de ajuda, ou ainda, oferecer terapia familiar e acompanhamento psicológico individualizado. A expressão "apoio sócio-familiar", por sua vez, é geralmente vinculada ao auxílio material ou financeiro do núcleo familiar, sendo o fornecimento de cesta-básica o exemplo, por excelência, de tal atividade. (Op. cit. p. 296-297)

Portanto, sendo suas atividades estatutárias de caráter sociofamiliar, deveria a ré estar previamente registrada no CMDCA para poder funcionar. Não passou sem ser notado e cabe aqui o destaque que por ocasião de sua resposta à ação a ré não demonstrou ter regularizado a situação que fez nascer a presente ação.

No mais e apesar dos argumentos até aqui expendidos já serem suficientes à procedência do pedido, tem-se observando as provas apuradas que a ré teve seu registro negado em razão de diversas irregularidades apontadas no ofício n. 9/2011 do CMDCA endereçado ao autor (fls. 6-7).

Indeferido o pedido de registro, antes de levar adiante suas atividades, a ré deveria ter contestado administrativamente ou judicialmente a decisão do CMDCA, a fim de demonstrar as condições que sustenta ter para se enquadrar na debatida exigência legal.

Ainda que não se insira no objeto da demanda, necessário dizer que as irregularidades noticiadas pelo CMDCA ao autor foram ratificadas por relatórios técnicos do Ministério Público, fazendo concluir que, a despeito do registro não alcançado, havia uma ampla estrutura de captação de recursos, sob argumentos altruísticos e desproporcionais aos benefícios ofertados, para induzir a população a contribuir para o financiamento de serviço não autorizado, o que por si só constituía contundente indicativo de que a continuidade das atividades da ré implicaria concreta lesão à coletividade (fls. 358-401).

Por fim, quanto aos gêneros alimentícios angariados, não há intervenção judicial a ser feita, uma vez que o direcionamento a ser dado a eles trata-se de uma questão de logística da própria ré.

Dispositivo:

Ante o exposto, confirmo a medida liminar e acolho o pedido formulado pelo Ministério Público em face de ACC – Associação a Crianças com Câncer, para condenar a ré a se abster de exercer suas atividades no âmbito da comarca de Cricúma sem o registro a que se refere o art. 91 do Estatuto da Criança e do Adolescente, sob pena de multa diária no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), sem prejuízo da responsabilidade pessoal dos dirigentes pelo descumprimento da determinação judicial.

Comunique-se o teor desta decisão ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente – CMDCA de Criciúma e ao relator do agravo de instrumento interposto pela ré.

Indefiro a justiça gratuita à ré, pois, como se trata de pessoa jurídica, a declaração de hipossuficiência financeira não basta, sendo necessária a demonstração da real necessidade da concessão do benefício. Nesse sentido, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina:

Agravo de Instrumento. Ação de rescisão contratual e indenização por perdas e danos. Contrato administrativo. Justiça gratuita. Pessoa jurídica. Declaração de hipossuficiência. Ausência de demonstração da insuficiência de recursos e do comprometimento da saúde financeira da empresa. Indeferimento do benefício. Manutenção da decisão. Recurso desprovido. Em que pese os ditames traçados pela Lei n. 1050/60, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, passou-se a exigir a efetiva comprovação do estado de hipossuficiência aos requerentes para a concessão dos pedidos de gratuidade judiciária. O art. 5º, inciso LXXIV, da Carta Magna é cristalino ao afirmar que "o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos." A jurisprudência firmou entendimento no sentido de ser possível a concessão da assistência judiciária gratuita a pessoa jurídica, desde que comprove a incapacidade de arcar com os encargos do processo em detrimento da manutenção da empresa (TJSC, AI n. 2008.071651-6, de Joinville, Rel. Des. Mazoni Ferreira, j. 24.4/2009). (Agravo de Instrumento n. 2012.087278-3, de Chapecó. Rel. Pedro Manoel Abreu. Terceira Câmara de Direito Público. Julgado em 28/5/2013)

Consequentemente, considerando que "a regra de isenção de custas e emolumentos inserta nos arts. 141, § 2º, e 198, I, do ECA é de aplicação restrita às crianças e aos adolescentes quando partes, autoras ou rés em ações movidas perante a Justiça da Infância e da Juventude, não alcançando outras pessoas que eventualmente possam participar dessas demandas" (REsp 1097824/RJ, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, Rel. p/ Acórdão Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 19/02/2009, DJe 27/03/2009), condeno a ré ao pagamento das despesas processuais.

Com o trânsito em julgado, arquive-se.

P. R. I.

Criciúma, 17 de setembro de 2013.

Giancarlo Bremer Nones


Juiz de Direito

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