No dia 8 de abril de 2014, foi publicado o acórdão de julgamento do recurso de apelação interposto pelo Estado de Santa Catarina contra decisão judicial prolatada em Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público, através da 8ª Promotoria de Justiça de Criciúma.
A ação foi deflagrada em dezembro de 2012, com a finalidade de fazer o Estado de Santa Catarina cumprir seu papel de gestor do sistema e observar a lei, o SINASE e o "convênio", do qual ele próprio é signatário, para dar a devida destinação ao Centro de Atendimento Socioeducativo Provisório de Criciúma e, em primeiro lugar, observe a função da unidade, transferindo-se, de imediato, todos os adolescentes internados quem cumprem medida socioeducativa definitiva; em segundo, para que ficasse o Estado obrigado a não mais permitir que se ingressasse no CASEP local adolescentes em conflito com a lei com medida socioeducativa de internação definitiva (clique aqui para acessar a íntegra da petição inicial)
Após a decisão liminar favorável ser confirmada em sentença pelo Juízo da Infância e Juventude, o Estado de Santa Catarina recorreu ao Tribunal de Justiça, sendo o recurso apreciado no dia 1º de abril, acolhendo parcialmente o apelo interposto para, unicamente, redirecionar a multa imposta ao agente político, no caso à Secretária de Justiça e Cidadania, ao ente federativo, leia-se Estado de Santa Catarina.
Em resumo: O Estado de Santa Catarina está obrigado a abster-se de encaminhar adolescentes
em conflito com a lei para o cumprimento de medida socioeducativa de internação
no Centro de Atendimento Socioeducativo Provisório - Casep de Criciúma,
mantendo-se, na unidade, unicamente os adolescentes internados
provisoriamente, sob pena de multa diária a ser, agora, arcada pelo ente federativo e não mais pessoalmente na figura do Secretário de Justiça e Cidadania, gestor do sistema socioeducativo.
Confira a íntegra do acórdão da lavra do Desembargador João Henrique Blasi:
Apelação Cível n. 2013.072008-5, de Criciúma
Relator: Des. João Henrique Blasi
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM OBRIGAÇÃO DE FAZER E NÃO
FAZER. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. CENTRO DE ATENDIMENTO
SOCIOEDUCATIVO PROVISÓRIO. PRELIMINAR DE
INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA DA VARA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE. REJEIÇÃO. MATÉRIA
DE FUNDO: MANUTENÇÃO DE ADOLESCENTES QUE CUMPREM MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS COM
OUTROS PROVISORIAMENTE INTERNADOS. DESCABIMENTO. LESÃO A DIREITOS INDIVIDUAIS
HOMOGÊNEOS, DIFUSOS E COLETIVOS. POSSIBILIDADE
DE CONTROLE JUDICIAL. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA DO PEDIDO MANTIDA, APENAS COM O
REDIRECIONAMENTO DA MULTA (ASTREINTE)
IMPOSTA AO AGENTE PÚBLICO PARA O ENTE-RÉU. APELO PARCIALMENTE PROVIDO.
I. "O Estatuto da Criança e
do Adolescente firma como sendo da competência absoluta da Vara da Infância e
da Juventude processar e julgar as ações fundadas
em interesses individuais, difusos ou coletivos vinculados à criança e ao
adolescente." (TJSC - Conflito de Competência n. 2013.047968-3, de
Tubarão, rel. Des. Fernando Carioni, j. em 4.9.2013)
II. "O controle judicial das políticas públicas é vedado
quando o pleito deduzido em sede de ação civil pública reveste-se de caráter
genérico, inespecífico e abstrato, [...]
Quando, porém, da execução de determinada política pública, seja por ação
ou omissão, decorre prejuízo concreto a interesses individuais homogêneos,
difusos ou coletivos [como sói
ocorrer no caso dos autos, em que há evidente malefício a adolescentes, pela ação
estatal de transferir quem cumpre medida socioeducativa de internação para
estabelecimento de internação provisória], nasce a pretensão ao controle
judicial de tais políticas por meio de ação coletiva. [Por outro lado] a extensão ao agente político de sanção
coercitiva aplicada à Fazenda Pública, ainda que revestida do motivado escopo
de dar efetivo cumprimento à ordem mandamental, está despida de
juridicidade. A norma que prevê a adoção da multa como medida necessária
à efetividade do título judicial restringe-se ao réu, como se observa do § 4º do
art. 461 do Códex Instrumental. Orientação recente do STJ, REsp 747371/DF, rel.
Min. Jorge Mussi, j. 6.4.2010." (TJSC - Apelação Cível n. 2009.072335-6,
de Caçador, rel. Des. Pedro Manoel Abreu, j. em 17.8.2010)
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação
Cível
n. 2013.072008-5, da comarca de Criciúma (Vara
da Infância e da Juventude e Anexos), em que é apelante Estado de Santa Catarina e apelado Ministério
Público do Estado:
A Segunda
Câmara de Direito Público
decidiu, por votação unânime, dar parcial provimento ao recurso para
redirecionar a imposição de multa diária (astreinte) unicamente contra o
réu (Estado de Santa Catarina). Custas legais.
Participaram do julgamento, realizado nesta data, os
Exmos. Srs. Desembargadores Sérgio Baasch Luz, que o presidiu, e Cid Goulart.
Florianópolis, 1º de abril de 2014
João Henrique Blasi
Relator
RELATÓRIO
Cuida-se de apelação interposta pelo
Estado de Santa Catarina, representado pelo Procurador André Doumid Borges,
contrastando sentença proferida pelo Juiz Giancarlo Bremer Nones (fls. 301 a 309),
que, em ação civil pública proposta pelo Ministério Público do Estado, em petição
inicial subscrita pelo Promotor de Justiça Mauro Canto da Silva, assim decidiu:
[...]
acolho o pedido formulado pelo Ministério Público em face do Estado de Santa
Catarina, para confirmar a liminar de fls. 150-157 e para: A) condenar o réu a
abster-se de encaminhar adolescentes em conflito com a lei para o cumprimento
de medida socioeducativa de internação no Casep de Criciúma, sob pena de multa
diária de R$ 500,00 (quinhentos reais) por interno revertida ao FIA de Criciúma,
a ser arcada pessoalmente pela Secretária de Estado de Justiça e Cidadania, sem
prejuízo da remessa de cópia dos autos à curadoria da moralidade
administrativa, para os fins do art. 29 da Lei n. 12.594/2012; B) condenar o réu
a transferir os adolescentes internados provisoriamente no Casep de Criciúma,
que forem sentenciados ao cumprimento de medida socioeducativa de internação,
para uma unidade de execução no prazo de 30 (trinta) dias, a contar da requisição
de vaga, sob pena de multa diária de R$ 500,00 (quinhentos reais) por dia de
descumprimento revertida ao FIA de Criciúma, a ser arcada pessoalmente pela
Secretária de Estado de Justiça e Cidadania, sem prejuízo da remessa de informações
à curadoria da moralidade administrativa, para os fins do art. 29 da Lei n. 12.594/2012.
Comunique-se com urgência ao relator do recurso de agravo interposto pelo réu. Uma
vez que a condenação não possui valor certo, inaplica-se a exceção prevista no §
2º do art. 475 do Código de Processo Civil. Sendo assim, após o decurso do
prazo para os recursos voluntários, remetam-se os autos ao Tribunal de Justiça,
para o reexame necessário. Procedimento isento de custas e emolumentos, nos
termos do § 2º do art. 141 do Estatuto da Criança e do Adolescente. (fls. 308 e
309)
Aduz o apelante: (i) incompetência absoluta do Juízo de origem,
dado que o feito deveria ter sido processado e julgado pela Vara da Fazenda Pública;
(ii) impossibilidade jurídica do pedido, por envolver discricionariedade
administrativa; (iii) adequação das medidas tomadas para o atendimento dos
adolescentes infratores em Criciúma e em todo o território catarinense; (iv) ausência
de previsão orçamentária; (v) inviabilidade de fixação de multa contra a Secretária
de Estado de Justiça e Cidadania por eventual descumprimento da decisão
recorrida (fls. 383 a 398); e, por fim, (vi) prequestionamento dos dispositivos
legais invocados.
Houve contrarrazões (fls. 401 a 406).
O Procurador de Justiça Paulo Cezar Ramos de Oliveira opinou pelo desprovimento do recurso (fls. 412 a 420).
É o relatório.
VOTO
A sentença sob exame assim dirimiu a
lide:
3. A
preliminar de incompetência do Juízo da Vara da Infância e da Juventude não
merece guarida.
Com efeito, tratando-se de
demanda que tem como fundamento a violação dos direitos do adolescente
por parte do Estado de Santa Catarina (art. 98, III, do Estatuto da Criança e
do Adolescente), a competência para processar e julgar a causa passa a ser do
Juízo da Infância e da Juventude, nos termos do art. 148, IV, combinado com o art. 209 do Estatuto da
Criança e do Adolescente, em detrimento do Juízo da Fazenda Pública. A propósito
do tema, destaca-se o entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça:
DIREITO
PROCESSUAL CIVIL. COMPETÊNCIA E CONDIÇÕES DA AÇÃO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MINISTÉRIO
PÚBLICO. CONSTRUÇÃO DE PRÉDIOS PARA
IMPLEMENTAÇÃO DE PROGRAMAS DE ORIENTAÇÃO E TRATAMENTO DE CRIANÇAS E
ADOLESCENTES ALCOÓLATRAS E TOXICÔMANOS. VARA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE. ARTS. 148,
IV, 208, VII, E 209 DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. REGRA ESPECIAL:
- É competente
a Vara dá Infância e da Juventude do local onde ocorreu a alegada omissão para
processar e julgar ação civil pública ajuizada contra o Estado para á construção
de locais adequados para a orientação e tratamento de crianças e adolescentes
alcoólatras e toxicômanos, em face
do que dispõem os arts. 148, IV, 208,
VII, e 209, do Estatuto da Criança e do Adolescente. Prevalecem estes dispositivos
sobre a regra geral que prevê como competentes a Fazenda Pública quando
presentes como partes Estado e Município.
II -
Agravo regimental improvido. (AgRg no Resp 871.204/RJ, Rel. Ministro
Francisco Falcão, Primeira
Turma, julgado em 27/2/2007, DJ 29/03/2007,
p. 234) -
4. A
preliminar de impossibilidade jurídica do pedido confunde-se com a matéria de fundo
e será apreciada conjuntamente com o mérito da demanda.
5. Relativamente
à inobservância dos preceitos da Lei. n. 8.437/92, destaca-se, de início, que o
réu foi previamente instado a se manifestar quanto ao pedido de liminar.
Ainda,
conforme consignado na interlocutória, levando-se em consideração que o
aditamento teve como fundamento os
documentos apresentados pelo Estado de Santa Catarina em sua manifestação
a respeito do requerimento de tutela liminar, bem como o disposto no art. 213, §
1º, do Estatuto da Criança e do Adolescente, era dispensável novo
pronunciamento do réu, sendo possível a imediata apreciação da medida initio
litis.
Além
do mais, não se vislumbra a irreversibilidade da providência liminar, uma vez
que no caso de eventual provimento do
recurso interposto, ou improcedência do pedido, a situação poderá retornar ao
status quo ante.
6. De
acordo com o art. 4º, III, da Lei n. 12.594/2012 (Lei do Sinase), compete aos
Estados criar, desenvolver e manter programas para a execução das medidas
socioeducativas de semiliberdade e internação.
Por
sua vez, a Resolução n. 165/2012 do Conselho Nacional de Justiça, que dispõe sobre
normas gerais para o atendimento, pelo Poder Judiciário, ao adolescente em
conflito com a lei no âmbito da internação provisória e do cumprimento das medidas socioeducativas,
definiu, que a gestão das vagas de internação é atribuição do órgão gestor do
atendimento socioeducativo:
Art.
5º O ingresso do adolescente em unidade de internação e semiliberdade, ou serviço
de execução de medida socioeducativa em meio aberto (prestação de serviço à comunidade
ou liberdade assistida), só ocorrerá mediante a apresentação de guia de execução,
devidamente instruída, expedida pelo juiz do processo de conhecimento.
...
Art.
6º A guia de execução, provisória ou definitiva, deverá ser expedida pelo juízo
do processo de conhecimento.
§ 1º
Formalizada a guia de execução, conforme regrado pelos arts 6º, 7º e 8º desta
Resolução, o juízo do processo de conhecimento encaminhará, imediatamente, cópia
integral do expediente ao órgão gestor do atendimento' socioeducativo,
requisitando designação do programa ou da unidade de cumprimento da medida.
§ 2º
O órgão gestor do atendimento socioeducativo, no prazo máximo de 24 (vinte e
quatro) horas, comunicará o programa ou a unidade de cumprimento da medida ao
juízo do processo de conhecimento e ao juízo responsável pela fiscalização da
unidade indicada (Resolução do CNJ n. 77/2009)
No
caso do Estado de Santa Catarina, conforme destacado na contestação, a gestão
de vagas das unidades de internação é realizada pelo Departamento de Administração
Socioeducativa - Dease, vinculado à Secretaria de Estado da Justiça e Cidadania.
Em
relação ao Casep de Criciúma, a atribuição do Dease para a administração e
distribuição de vagas está prevista no item II da Cláusula Quarta do Convênio n.
2013/061, firmado em dezembro de 2012 (fls. 268-285):
A
SECRETARIA e o DEASE obrigar-se-ão a:
...
II - Administrar, conforme encaminhamento
judicial, a distribuição das vagas solicitadas pelas Varas da Infância e
Juventude, observando sempre que possível, o critério territorial disposto no
inciso VI do Art. 124 e demais critérios estabelecidos pelas Leis nº 8.069/90 -
Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA e pela Lei nº 12.594/12 - Sistema
Nacional de Atendimento Socioeducativo - SINASE, bem como a observância da
divisão territorial por circunscrição judiciária e municípios adjacentes;
...(fl.
270)
Esse
poder de gestão do sistema de internação e das respectivas vagas não é absoluto,
uma vez que jungido aos preceitos definidos no Estatuto da Criança e do
Adolescente e na Lei do Sinase.
De
acordo com o Convênio n. 18900/2009-6 (fls. 26-31), celebrado entre o Estado de
Santa Catarina e a Multiplicando Talentos em 17 de dezembro de 2009, o Centro
de Internamento de Criciúma destinava-se ao atendimento de adolescentes aos
quais se atribuísse a prática de ato infracional, em regime de internamento provisório e definitivo (cláusula
primeira e cláusula quinta, item 1).
Apesar
da definição contratual, importante ressaltar que "a unidade de Criciúma não
possui estrutura adequada ao atendimento simultâneo de adolescentes internados
provisória e definitivamente, conforme registrou o Conselho Nacional de Justiça
no relatório descritivo da unidade, elaborado em decorrência do Projeto Medida
Justa, após visita realizada no dia 24 de agosto de 2010:
A Unidade
não oferece condições adequadas para os fins a que se destina (atendimento
cumulado CIP e CER), desrespeitando os critérios adotados pelo SINASE. (fl. 158)
A
inadequação da unidade para o atendimento simultâneo de internações provisórias e definitivas foi igualmente
verificada pela Coordenadoria de Execução Penal e da Infância e Juventude do
Tribunal de Justiça de Santa Catarina, por ocasião de inspeção realizada no dia
26 de maio de 2010:
Apesar
de ser um CIP, cuja proposta é execução de programa de internação provisória
pelo prazo de 45 dias, esta unidade de Criciúma vem atendendo adolescentes que
cumprem medida socioeducativa de internação, em razão da falta de vagas nos
Centros Educacionais Regionais, estabelecimentos adequados a tal finalidade. (fl.
167)
Dentre
as recomendações emitidas, em decorrência da inspeção para adequação da
unidade, extrai-se a seguinte medida:
Providenciar
a transferência dos adolescentes que cumprem medida de internação para um dos
Centros Educacionais Regionais do Estado. (fl. 167)
Pelo
que se infere do Convênio n. 2013/061, celebrado entre o Estado de Santa
Catarina e a Multiplicando Talentos em dezembro de 2012 (fls. 268-285), o próprio
réu reconheceu a inadequação da unidade de internamento de
Criciúma para o atendimento simultâneo das duas modalidades de internação,
tanto que restringiu o atendimento à internação provisória.
É o
que se observa da cláusula primeira, que definiu o objeto do novo convênio de
gestão do Casep de Criciúma:
O presente
Convênio tem por objeto prestar atendimento a adolescentes aos quais se atribua
autoria de ato infracional, em cumprimento
de medida socioeducativa de
Internação Provisória, devidamente decretado pela autoridade judiciária,
dando cumprimento às decisões judiciais das respectivas Varas da Infância e
da Juventude, prestando atendimento socioeducativo na forma do
estabelecido nos artigos 94, 108, 121, 123, 124, 125, 183, 185 e seguintes da
Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente) (fl. 269)
No
mesmo sentido, é a obrigação assumida pela entidade conveniada na cláusula
quinta, item 1:
A
ENTIDADE obrigar-se-á a:
- Disponibilizar
20 (vinte) vagas, para atendimento a adolescentes aos quais se atribua autoria
de ato infracional em regime de Internação Provisória; (fl. 272)
Importante
destacar que a alteração do objeto do convênio se deu em decorrência de um juízo
de conveniência e oportunidade do gestor do sistema socioeducativo que, mesmo
ciente de eventual carência de vagas, ou da ausência de previsão orçamentária,
entendeu por bem restringir a destinação do Casep de Criciúma ao atendimento de
adolescentes internados provisoriamente.
Se
assim agiu o administrador, no exercício de seu poder discricionário, é porque
não só reconheceu a inadequação da manutenção dos adolescentes que cumprem
medida socioeducativa de internação no Casep de Criciúma como também previu a
possibilidade do imediato encaminhamento dos internos já sentenciados para
unidades destinadas à execução.
Sempre
importante lembrar que ao administrador não é dado o direito de se beneficiar
da própria torpeza. A gestão da coisa pública exige responsabilidade, sendo
incompatível com o principio da moralidade administrativa a deliberação
meramente retórica a respeito de política pública, notadamente aquela voltada ao atendimento do público
infanto-juvenil, gravada pela Constituição da República como prioridade
absoluta.
Sendo
assim, verifica-se que o acolhimento do pedido é medida que se impõe, a fim de
que seja determinado que o Estado, de Santa Catarina, na gestão das vagas do
Casep de Criciúma, restrinja a Unidade ao atendimento de adolescentes
internados provisoriamente, nos exatos termos do Convênio celebrado com a
organização não governamental Multiplicando Talentos em dezembro de 2012.
Saliente-se
que a decisão, nesses termos, não interfere na discrionariedade administrativa,
nem implica indevida intervenção judicial na gestão de vagas para internação de
adolescentes em conflito com a lei no Estado de Santa Catarina, na medida em
que respeita o juízo de conveniência e oportunidade formulado pelo réu por
ocasião da confecção do ato administrativo.
Relativamente
à impossibilidade de estabelecimento de multa para o caso de descumprimento da
determinação judicial em desfavor da pessoa jurídica de direito público, cumpre
registrar que esta não é a hipótese dos autos, uma vez que a astreinte
foi aplicada à autoridade que tem competência para cumprir a decisão, no caso a
Secretária de Estado de Justiça e Cidadania, signatária do Convênio em discussão
(fls. 156-157). (fls. 304 a 308)
Considero, no geral,
acertada a decisão recorrida.
Isagogicamente, no
tocante à ventilada incompetência absoluta do Juízo originário, o Órgão
Especial desta Corte, alterando compreensão anterior, firmou intelecção quanto à
competência da Vara da Infância e da Juventude para processar e julgar feito de
interesse de menor. Confira-se a ementa:
CONFLITO
NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. DIVERGÊNCIA ENTRE A VARA DA
INFÂNCIA E DA JUVENTUDE E A VARA DA FAZENDA PÚBLICA. FORNECIMENTO DE
MEDICAMENTOS. AÇÃO PROPOSTA POR MENOR ABSOLUTAMENTE INCAPAZ. QUESTÃO AFETA AO DIREITO INDIVIDUAL
E INDISPONÍVEL DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE. ART. 148,
IV, DO ECA. NORMA QUE SE SOBREPÕE ÀS DIRETRIZES DE DISTRIBUIÇÃO DE COMPETÊNCIA
DITADAS PELO CÓDIGO DE DIVISÃO E ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA DE SANTA CATARINA. COMPETÊNCIA
ABSOLUTA FIRMADA NA VARA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE. PRECEDENTES DO SUPERIOR
TRIBUNAL DE JUSTIÇA. CONFLITO
IMPROCEDENTE.
O Estatuto da Criança e do Adolescente firma como sendo da competência
absoluta da Vara da Infância e da Juventude processar e julgar as ações
fundadas em interesses individuais, difusos ou coletivos vinculados à criança e
ao adolescente. (CC n. 2013.047968-3, de Tubarão, rel. Des. Fernando Carioni, j.
4.9.2013 - negritei)
Se, no
feito acima ementado, referente ao fornecimento de fármaco a menor, a competência
foi reconhecidamente proclamada em favor da Vara da Infância e da Juventude, no
caso dos autos, alusivo ao internamento de adolescentes em estabelecimento
estatal, esse entendimento, com muito mais razão, deve ser vocalizado.
Afinal, o art. 148,
inc. IV, do Estatuto da Criança e do Adolescente dispõe que "a Justiça da
Infância e da Juventude é competente para [...] conhecer de ações civis
fundadas em interesses individuais, difusos ou coletivos afetos à criança e ao
adolescente, observado o disposto no art. 209".
Sobreleva invocar, no
ponto, o abalizado escólio de Antônio Fernando do Amaral e Silva. Verbis:
" [...] sendo um ramo especializado da Justiça local, as leis
de organização judiciária regulamentarão o sistema de acordo com as
peculiaridades de cada Estado, mas, no que tange à competência, terão de se
ater ao disposto no artigo supra, prevalecendo a lei hierarquicamente superior",
que é o Estatuto da Criança e do Adolescente. (in Estatuto da criança e
do adolescente comentado. 9 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2008. p. 588)
Na mesma senda tem
assentado o Superior Tribunal de Justiça. Veja-se:
PROCESSUAL CIVIL. COMPETÊNCIA. VARA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE.
[...]
2. A pretensão deduzida na demanda enquadra-se na hipótese contida
no art. 148, IV, c/c art. 209 do ECA, sendo da competência absoluta do Juízo da
Vara da Infância e da Juventude a apreciação das controvérsias fundadas em
interesses individuais, difusos ou coletivos vinculados à criança e ao
adolescente. Precedentes (EDcl no AREsp 24798/SP, rel. Min. Castro Meira, 2ª Turma,
j. 7.2.2012)
É o quanto basta para
firmar-se, sem ressaibo de dúvida, a competência do Juízo sentenciante.
Passo ao
exame da matéria de fundo, diretamente imbricada com a preliminar de
impossibilidade jurídica do pedido.
Dimana
dos autos, no essencial, que o Estado-réu/recorrente foi compelido a abster-se
de encaminhar adolescentes em conflito com a lei para o cumprimento de medida
socioeducativa de internação no Centro de Atendimento Socioeducativo Provisório
- Casep de Criciúma, mantendo-se, naquela unidade, unicamente os adolescentes
internados provisoriamente, bem assim foi imposta multa à Secretária de Estado
da Justiça e Cidadania, em caso de eventual descumprimento do decisum.
Tratando
especificamente dessa matéria este Tribunal decidiu:
Apelação
cível em ação civil pública. Obrigação de fazer e não fazer. Transferência,
pelo Estado, de adolescentes sujeitos à medida de internação definitiva para
Centro de Internação Provisória. Inexistência de infraestrutura adequada. Prejuízo
aos demais adolescentes submetidos à medidas menos graves e funcionários do
estabelecimento. Decreto de procedência, no primeiro grau de jurisdição. Alegada
violação ao princípio da Separação dos Poderes, por invasão de atribuições
exclusivamente administrativas no trato das políticas públicas. Inocorrência. Discricionariedade
que não pode resultar em lesão a direitos individuais homogêneos, difusos e
coletivos. Lesão in concreto configurada. Controle judicial de
políticas públicas autorizado, na hipótese. Multa diária. Direcionamento contra
os agentes públicos. Impossibilidade, ante a recente orientação do Superior
Tribunal de Justiça. Prazo exíguo para cumprimento da ordem judicial. Ampliação.
Recurso parcialmente provido.
O
controle judicial das políticas públicas é vedado quando o pleito deduzido em
sede de ação civil pública reveste-se de caráter genérico, inespecífico e
abstrato, hipótese inocorrente na espécie. Quando, porém, da execução de
determinada política pública, seja por ação ou omissão, decorre prejuízo
concreto a interesses individuais homogêneos, difusos ou coletivos [como sói
ocorrer no caso dos autos, em que há evidente malefício a adolescentes, pela ação estatal de
transferir quem cumpre medida socioeducativa de internação para estabelecimento
de internação provisória], nasce a pretensão ao
controle judicial de tais políticas por meio de ação coletiva.
[Outrossim],
a extensão ao agente político de sanção coercitiva aplicada à Fazenda Pública,
ainda que revestida do motivado escopo de dar efetivo cumprimento à ordem
mandamental, está despida de juridicidade. A norma que prevê a adoção da multa
como medida necessária à efetividade do título judicial restringe-se ao réu,
como se observa do § 4º do art. 461 do Códex Instrumental". Orientação
recente do STJ, REsp 747371/DF, rel. Min. Jorge Mussi, j. 6.4.2010. (AC n. 2009.072335-6,
de Caçador, rel. Des. Pedro Manoel Abreu, j. 17.8.2010)
No que atina com a invocada falta de
previsão orçamentária, tem-se que ela não deve servir de entrave ao caso em
tela, tornando-se, pois, irrelevante ante o direito à vida, à saúde e a própria
dignidade da pessoa humana, bem como o princípio da prioridade absoluta de
tratamento, a ser assegurado à adolescente.
Como a solução aviada pela sentença recorrida encontra endosso
em precedentes jurisprudenciais, e defluindo ela da efetiva aplicação do
Estatuto da Criança e do Adolescente, é de se mantê-la, no essencial, dando-se
provimento ao apelo apenas redirecionar a imposição da multa diária (astreinte)
exclusivamente contra o réu (Estado de Santa Catarina).
Com esse contorno é de prover-se
parcialmente a apelação, consignando-se, por fim, de que o prequestionamento
desnuda-se despiciendo sempre que, como no caso dos autos, o julgador já tenha
encontrado fundamentação bastante em prol do decidido, até porque não está ele
obrigado a responder a todas as perquirições pontualmente deduzidas pelos
litigantes.
Eis o voto.