quarta-feira, 16 de julho de 2014

Feliz Aniversário, ECA!

happy children site

Por Roberto Tardelli.


Os mais jovens nem eram nascidos. 
Nas estradas do interior do estado, caminhões logo cedo iniciavam uma romaria perversa, que começava na manhã quase noite: lotado, caçamba a céu aberto, iam nele os trabalhadores rurais, homens e mulheres, com suas crianças. Todos para a roça, cortar cana. A expressão bóia-fria vem do final dos anos 70 e anos 80 e decorria da marmita fria que comiam, com baixo suporte nutricional. As crianças e adolescentes pegavam no pesado, no muito pesado e a escola era para muitos uma coisa que existia para outras crianças que viviam em outros lugares. Voltavam à noite, imundos e exaustos. Na lição da vida, a única matéria ensinada era a subsistência.
Nos fóruns, havia os cartórios de menores e eram sempre alocados na piores instalações. Seu escrivão era uma autoridade, a ponto de existirem, aqui e ali, verdadeiras celas prisionais onde menores infratores eram detidos, fechados e passavam ali até alguns dias. Para tanto bastava que um ato anti-social fosse praticado e sua definição era o que o juiz de menores assim entendia.
Havia uma curiosa espécie de adoção, a adoção simples, que, por doido que fosse criava parentesco entre adotante e adotado, tão somente. Por louco que pareça hoje, o adotado, nessa modalidade, era filho, mas não era neto, nem irmão, nem sobrinho ou primo porque esse raio de adoção limitava os vínculos de parentesco entre adotante e adotado. Já havia sido pior, era uma certa legitimação adotiva, que exigia o consentimento dos avós, para que o forasteiro entrasse no seio da família.
Famílias abastadas e nem tão abastadas traziam meninas jovens de cidades do interior do Brasil para os centros maiores. Claro, dizia-se que era para que aquela criança, tirada da desgraça e da miséria pela bondade que sobejava, recebesse educação e pudesse sonhar com dias melhores. Na verdade, eram trazidas para que trabalhassem como empregadas sem direitos trabalhistas, não raro tendo a missão de iniciar sexualmente os filhos mais bem nascidos. Grávidas, eram postas na rua e acolhidas em obras e maternidades sociais. Naqueles dias, só tinham direito a assistência médica quem fosse integrado ao mercado formal de trabalho ou regularmente aposentado. Havia uma multidão de gente sem nenhuma assistência, os indigentes.
A pobreza um argumento incontrastável para internação de prole miseráveis. Irmãos eram separados, em nome do Bem, muitos nunca mais se encontrando, salvo em lacrimejantes programas de TV, em que apresentadores anunciavam o encontro de irmãos, apartados por décadas.
Nesse contexto histórico, há exatos vinte e quatro anos, veio a mais transformadora das leis brasileiras dos últimos 150 anos: o Estatuto da Criança e do Adolescente.
A própria palavra – criança – por mais que se procure, nunca foi lembrada pelo legislador, que sempre optou por menor. A palavra criança tem um ar que carrega ingenuidade, inocência, pureza, que jamais sentiríamos na assepsia jurídica da palavra menor. Uma criança é diferente ontologicamente de um menor. Quando, naqueles dias, víamos a expressão criança ganhar espaço legislativo, foi uma descoberta. Sim, não tínhamos e nunca tivéramos menores, mas sempre crianças e adolescentes. Foi como se acendêssemos uma luz no breu. A obviedade oculta nos despertou para as crianças carvoeiras, para as crianças da cana. Os menores abandonados se transformaram em crianças, meninos e meninas de rua e isso nos chocou. Muitos de nós desconhecíamos que os menores eram meninos e meninas, tais como eram também os nossos filhos.
Filhos… Quando descobrimos que os filhos nascem do coração, crescem no coração, brincam no coração, aquela fórmula anterior de adoção se tornou grotesca, subdesenvolvida e perversa. Filhos são filhos, diz a óbvia constatação de humanidade que nos anima.
Aos adolescentes que infringiam a lei, quase caímos da pernas quando se entoou que eles igualmente aos adultos tinham direito de defesa e tinham uma prerrogativa elementar: somente serem processados se o fato fosse típico. Isso, descrito anteriormente na lei, não na cabeça do juiz. Uma revolução no pensamento.
No plano político, a infância conhecia uma expressão inédita: prioridade absoluta. Não sabíamos e ainda não sabemos exatamente o que viria a ser isso, mas ser prioridade mudou o cotidiano dos orçamentos públicos brasileiros. A escola, nesse aspecto,  passou ser direito do pequeno cidadão.
E, oculto sob as vestes de uma sociedade que ainda não se vocacionou a proteger seus rebentos, crepitava em lenha o elemento cruciante, que tudo mudou e que, como na canção linda de Milton, anunciou: Nada será como antes, amanhã. Esse elemento foi uma transformação, a criança e o adolescente tornam-se sujeitos de direito e não mais meros objetos de disposição de adultos hostis. Ter direitos é ser gente, na medida em que só gente possui direito. Direitos perante a sociedade e perante o Estado. Uma descoberta que demoramos séculos para fazer.
Por isso, temos muito a comemorar em mais um aniversário de promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente. É e será sempre uma obra inacabada. É e será sempre algo a ser reinventado e avançado. Mas talvez tenha sido a primeira de nossas leis contra a barbárie, contra a incivilidade, a primeira que, brechtianamente, prepara o chão para a gentileza.
Só nos falta, adultos de sempre, ser gentis.
Roberto Tardelli é Procurador de Justiça no Estado de São Paulo.
Texto originalmente publicado no site JUSTIFICANDO.COM

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